Doutor Miguel Morgado, seja bem-vindo ao primeiro jantar-conferência da Universidade de Verão 2012.
Começamos todos os jantares-conferências com um momento cultural protagonizado pelos participantes da Universidade de Verão. Trata-se da selecção de um poema e da sua leitura pelos grupos da Universidade.
Vamos, então, ouvir dois poemas: o primeiro, "Inocência” de Miguel Torga, escolhido pelo grupo Laranja, será a Cátia Tavares a ler. Escolheram este poema pelo enquadramento com a dura realidade que os jovens enfrentam actualmente e também pelos sentimentos que provoca: desde a revolta da inocência humana contra este fado, a busca de uma identidade que parece estar diluída, até ao desespero existencialista face à aparente inevitabilidade de um futuro incerto.
Depois, com o grupo Cinzento, através do João Estrela, vamos ouvir o poema "Hino Bravense” de Eugénio Tavares. Eugénio Tavares foi um grande defensor do espírito cabo-verdiano e esteve para Cabo Verde como Fernando Pessoa esteve para Portugal.
O grupo Cinzento escolheu este poema porque acha que para haver uma verdadeira Lusofonia primeiro será necessário que tenhamos homens como estes a batalhar por ela.
[AUDIÇÃO DE POEMAS, APLAUSOS]
Dep.Carlos Coelho
Obrigado aos grupos Laranja e Cinzento. Vamos começar este jantar de uma maneira especial, em certa forma em vossa homenagem, pois sei que temos aqui pessoas de todo o país, alguns são desta zona, quase todos vêm de longe e outros fizeram até um sacrifício e um esforço para estarem aqui na Universidade de Verão.
Mas há alguns que, para lá da distância e do tempo, decidem privar-se de outras coisas para poderem estar na nossa companhia. É o caso que não pode passar sem ser assinalado de alguém que faz hoje anos e que escolheu fazer o seu aniversário connosco na Universidade de Verão 2012.
Portanto, vem aí um bolo para a Tânia Coutinho, que faz anos hoje e vamos cantar os parabéns assim que o bolo entrar.
[TODOS CANTAM]
[APLAUSOS]
[DEPOIS DO JANTAR]
Ângelo Santos
Perante o nosso convidado, o Dr. Miguel Morgado, docente universitário em várias áreas de interesse público e hoje um homem que exerce funções de assessoria ao Governo pelo seu mérito profissional e pessoal espelhados nos artigos e livros por si escritos, convido a todos os presentes a fazerem um brinde à honra que representa para todos nós a presença do Dr. Miguel Morgado aqui na Universidade de Verão 2012.
[APLAUSOS]
Dep.Carlos Coelho
Senhor Doutor Miguel Morgado, senhor deputado Duarte Marques, senhor deputado Nuno Matias, senhor Presidente da Assembleia Municipal de Castelo de Vide, senhores avaliadores, senhores conselheiros, minhas senhoras e meus senhores, como o Ângelo já disse, o nosso convidado de hoje é um académico brilhante da nova geração, professor da Universidade Católica Portuguesa e que, hoje, exerce as funções de assessor do Primeiro-Ministro. É um dos assessores mais importantes do nosso Primeiro-Ministro.
Quis o destino do sorteio que fosse recebido esta noite pelo grupo Rosa. É uma ironia cheia de significado, na Universidade de Verão em que a escolha do grupo anfitrião e do brinde é ditada pelo sorteio e não pelas escolhas políticas. O professor Miguel Morgado é um homem austero, brilhante mas austero, não temhobbies, não tem comida preferida nem animal preferido. Sugere-nos um clássico de Montesquieu, "O espírito das leis” do século XVII; um filme clássico da ficção científica, o "Blade Runner”; e as qualidades que mais aprecia são a inteligência, a perspicácia, a generosidade, a coragem e a moderação, entre outras.
Espero, senhor professor, que sejam qualidades de que dê provas ao longo da sua vida e estou certo que assim será. A pergunta que tenho para lhe fazer, para iniciarmos a nossa conversa, poderia ser com mais propriedade e autoridade feita pelo Duarte Marques; se há político em Portugal que há já algum tempo chama a atenção para as questões da solidariedade intergeracional, é exactamente ele e faz sentido que seja uma matéria que tenha a ver sobretudo com a JSD.
Hoje, temos a plena consciência que há actos da governação que lançam uma hipoteca sobre o futuro dos jovens e sentimos que há uma assimetria entre os ciclos da política e os da governação, isto é, entre os ciclos eleitorais e os da responsabilidade. Tivemos, ainda há pouco, um Primeiro-Ministro socialista, José Sócrates, que foi eleito duas vezes aparentemente com popularidade, a primeira vez com maioria absoluta, a segunda com maioria relativa, e que estou certo que vamos demorar muito mais que os seis anos das funções que ele exerceu como Primeiro-Ministro a pagar os custos da governação irresponsável que ele fez enquanto esteve na chefia do Governo.
Esta é uma questão complicada sob o ponto de vista político: como é que garantimos que os decisores políticos, que são julgados de quatro em quatro anos, não tomam decisões cujos efeitos nefastos, ou nocivos, se projectam nas gerações seguintes? Sentimos isso no Ambiente, em que temos a clara consciência de que há decisões que se tomam que lançam uma hipoteca de muitos anos para o futuro e sentimos hoje também na crise económica e financeira que o país atravessa.
Isto está directamente ligado a uma discussão da actualidade que é a questão da chamada Regra de Ouro. Alguém considerou que o que era importante era agarrar os povos através de uma norma de valor constitucional que garanta que não se pode forçar o endividamento e que limite a capacidade de manobra dos governantes eleitos. Mas será que o dispositivo legal é suficiente; que o facto de consagrarmos na Constituição uma norma garante que um Governo irresponsável não vai continuar a fazer aquilo que José Sócrates fez durante seis anos impunemente?
Senhor professor, esta é a pergunta que lhe fazemos para começarmos este debate. Depois, teremos mais dez perguntas dos grupos da Universidade de Verão. Minhas senhoras e meus senhores, para responder à minha provocação e iniciar o debate esta noite, o professor Miguel Morgado.
[APLAUSOS]
Miguel Morgado
Obrigado a todos, é um prazer estar aqui. Começo por agradecer as palavras e elogios, absolutamente imerecidos, que recebi agora. Passando à pergunta, essa discussão da Regra de Ouro nem sempre tem sido abordada com a perspectiva mais adequada.
De um ponto de vista imediato esta Regra de Ouro indica uma medida exclusivamente financeira. É um erro pensar nela precisamente como um ditame financeiro, ela é evidentemente um ditame imediatamente financeiro, como eu disse, mas é muito mais que isso e é importante que olhemos para isso. Sobretudo nós, que estamos aqui a tentar reflectir sobre o futuro do país, é importante vermos para além da questão financeira e enquadrarmos a Regra de Ouro nesse contexto.
Vou fazer uma referência, historicamente, muito rápido: a partir do século XVII, quem andava a analisar a política resolveu visualizar e conceptualizar a sociedade como um contrato, daí nasce o contrato social e por aí adiante. Por isso, no século XVII e XVIII tornou-se numa espécie de moda, era quase impossível nós referirmo-nos aos problemas políticos, aqui na Europa, sem acabarmos por recuar por essa ideia de que a sociedade, o Estado, a comunidade política, resultava de um contrato social entre as pessoas.
Depois, no final do século XVIII, houve um tipo que pensava muito sobre estas coisas e lembrou-se de dizer assim: "nesta coisa do contrato há algo que não bate certo”, mas se é para alinhar por uma moda – e nós às vezes somos obrigados a alinhar pelas modas, porque, enfim, o vocabulário e linguagem disponíveis são aqueles e nós queremos chegar às pessoas, ser inteligíveis, queremos que as pessoas nos entendam e, por vezes, temos mesmo de alinhar por modas intelectuais com as quais muitas vezes não concordamos –, se quisermos ver a sociedade como um contrato, temos de dizer que a sociedade é um contrato não só com as pessoas que estão vivas, mas também com aquelas que já morreram e aquelas que estão por nascer.
Esta é uma maneira muito bonita e elegante de dizer que no exercício da governação e na própria atribuição de finalidades ao Estado, convém que possamos ver além do imediatismo do presente: olhar para trás para o passado e olhar para a frente para o Futuro.
Onde é que a questão da Regra de Ouro entra aqui? Entra na questão mais óbvia, que vocês todos já ouviram falar, de uma maneira ou de outra, que diz respeito à justiça, ou equidade, ou solidariedade intergeracional; que nós temos de pensar nas decisões presentes, no modo como os efeitos das nossas decisões de agora vão repercutir naqueles que estão por nascer.
Nas nossas circunstâncias, nós, hoje aqui em Portugal, sabemos das piores razões de como decisões políticas podem acarretar custos imensos sobre as gerações presentes e sobre as gerações futuras. A Regra de Ouro deve-se incluir nesta discussão do ponto de vista da solidariedade, ou justiça, intergeracional para que esta acabe por adquirir uma natureza semelhante àquilo que nós entendemos por justiça intergeracional nas questões do Ambiente.
Da mesma maneira que queremos deixar aos nossos filhos um meio-ambiente e ecossistema que sejam compatíveis com as suas necessidades e com as suas aspirações, com certeza, mas também com as condições fundamentais para a sobrevivência da espécie, também nós temos de garantir que naquela estrutura fundamental, onde todas as outras assentam, que é a estrutura e estabilidade financeiras, também aí nós possamos assumir as responsabilidades nas decisões presentes para as gerações que vêm a seguir.
Mas vejam que a Regra de Ouro fala muito mais; dirige-se ou aponta para finalidades que transcendem até esta questão da justiça intergeracional. O Carlos referiu aqui a questão da limitação do arbítrio dos executivos, isso é muito importante; reparem que a tendência que nós seguimos, das democracias ocidentais, é para uma expansão – que por enquanto ninguém sabe qual é o limite, a fronteira a partir da qual nós já não vamos cruzar – do poder executivo relativamente aos outros poderes.
E se é verdade que a expansão do poder executivo tornou-se necessária graças às mutações das sociedades modernas, aliás isso e as exigências que colocavam sobre o Estado e sobre o Governo, também é verdade que a expansão sem limites do poder executivo traz consigo ameaças à liberdade.
Neste caso, a Regra de Ouro tem exactamente a natureza de uma norma constitucional, como o Carlos disse e muito bem. Uma norma constitucional, não infraconstitucional, mas na Constituição, porque é que tem esta natureza? Porque, reparem: uma Constituição com uma democracia moderna, dinâmica, representativa, tem de ter um carácter tão aberto quanto for possível a uma Constituição ter.
O que é que isto significa? Significa que uma Constituição tem de dar o enquadramento para que diferentes projectos políticos, alternativos, democráticos, possam ganhar o estatuto de governação e exercer essa actividade de governação de acordo com os programas partidários. Isto é, não serve uma Constituição que se fecha à execução de um programa partidário, político, de Governo, sufragado pelos eleitores, que respeite os limites que naturalmente um Estado de Direito e democrático impõe, aí a Constituição é e tem de ser fechada.
Mas além disso, tem de dar essa latitude, porque as normas constitucionais serão tão ou mais constitucionais quanto mais abertas forem. A questão que se colocou desde o início foi que alguns sectores mais à Esquerda vêem a Regra de Ouro como uma espécie de imposição, uma espécie de corolário, de uma ameaça neoliberal que destruirá a civilização ocidental tal como a conhecemos. Reparem que é exactamente o contrário disso.
Uma Regra de Ouro, como está transcrita no Pacto Europeu recentemente aprovado na Assembleia da República aqui em Portugal, tem essa natureza de ser uma norma aberta e mais do que isso, tem essa propriedade de elevar a qualidade da nossa democracia. Já termino a resposta, é só concretizar o que isto quer dizer.
Porque é que ela é aberta? Reparem: uma Regra de Ouro não é uma norma de Esquerda, ou de Direita, neste caso o tendencial equilíbrio orçamental não é uma questão de Esquerda e de Direita.
Como já vimos, há aqui a questão da justiça intergeracional que também não é de Esquerda e de Direita, mas tem de ser salvaguardada de alguma maneira. Essa Regra de Ouro ajuda de alguma maneira a salvaguardá-la, não é suficiente apesar de necessária. Porque é que eleva a qualidade da democracia? Por uma razão muito simples: clarifica o debate público democrático. Este é um problema de que em Portugal temos padecido desde há uns 20 anos para cá.
O debate público em Portugal não tem sido claro e convém que o seja para que os eleitores possam fazer uma escolha consciente, uma escolha entre projectos políticos alternativos. Uma vezes o país se inclinará mais para a Esquerda, outras para a Direita, mas isso faz parte do ritmo pendular das democracias em todo o lado. É importante que os projectos políticos sejam mesmo alternativos, para que as pessoas tenham oportunidade de escolher mesmo e não estar a alimentar uma rotina de rotação de partidos que mais ou menos querem mesma coisa e então perde-se a oportunidade de escolha do eleitorado.
Porque é que a Regra de Ouro permite isto? É muito fácil perceber porquê. Porque se estiver consagrado constitucionalmente, esta regra tendencial de equilíbrio orçamental, então todos os partidos que vão a jogo, isto é, todos os que têm aspirações de governar, uns mais à Esquerda e outros mais à Direita, terão de ser consistentes do ponto de vista das consequências das suas decisões financeiras.
Isto é, um partido mais à Esquerda que promete ao eleitorado mais bem-estar social, mais gratuidade no acesso aos serviços públicos, tem de obrigatoriamente dizer no debate público, porque há esse pressuposto logo, como é que há-de pagar essas promessas que está a fazer ao eleitorado. Esse partido apresenta-se com um projecto mais à Esquerda, podemos dizer assim, de expansão do alcance do Estado, portanto isso implica maiores recursos financeiros, mas tem dizer que vai ter de aumentar os impostos.
Não se fica naquela ambiguidade em que tudo se promete e nada se apresenta como contrapartida dessas promessas.
Ao mesmo tempo, um partido com um projecto de libertar a sociedade civil relativamente ao Estado, de emagrecer o peso do Estado, pode ter a ambição de prometer reduzir os impostos, mas então, uma vez mais, segundo a lógica da norma de que estamos aqui a falar e que gostaríamos que fosse constitucional, da chamada Regra de Ouro, se vai reduzir as receitas fiscais do Estado também tem de dizer no mesmo fôlego quais são os serviços públicos que o Estado terá de dispensar para continuar a tentar cumprir esta Regra de Ouro.
Por isso, há aqui uma série de propriedades e efeitos que esta Regra tem e pode ter numa sociedade democrática, que vão muito além do horizonte financeiro e era bom que isso estivesse presente na discussão, mas infelizmente nem sempre está. Portanto, nós estamos aqui também a ajudarmos a que houvesse essa clarificação destas regras que estão a um alcance que não é meramente financeiro e mesmo que fosse já vimos que a estrutura financeira tem de ser vista como uma espécie de infra-estrutura onde assentam todas as outras estruturas que nos são caras, estaduais, privadas e semi-públicas.
Mas, no entanto, ver além disso e ver que esta Regra tem a capacidade de fazer uma coisa que Portugal precisa imenso a curto prazo que é elevar a qualidade da sua democracia.
[APLAUSOS]
Dep.Carlos Coelho
Muito bem. Vamos então iniciar a perguntas dos grupos. Começamos pelo grupo Azul com a Ricardina Bessa.
Ricardina Bessa
Boa noite. Aproveitando uma frase do orador, que o debate político tem de ser claro, a nossa pergunta prende-se com o facto de apesar de hoje poder parecer estranho, o PSD de Sá Carneiro surgiu como partido de Centro-Esquerda, que era caracterizado como interclassista, transversal a toda a sociedade, com uma enorme implantação popular devido em muito às nossas preocupações sociais.
Com o evoluir dos anos, parece que a ideologia do PSD se transferiu para o Centro-Direita, abandonando as preocupações sociais que nos caracterizavam. Concorda, ou acha que foi o próprio conceito de social-democracia que se alterou?
Miguel Morgado
Lembram-se de há pouco ter-vos dito que às vezes temos de alinhar por modas intelectuais e andar à procura de vocabulários e linguagens que não gostamos muito, mas também como estão disponíveis facilitam um bocado a nossa comunicação.
Parece-me que acabei por fazer isso há pouco a propósito dos conceitos de Esquerda e de Direita. Em grande medida, nós devíamos – claro que não seria uma tarefa para um, dez, ou mesmo 20 anos – ajudar aqui o debate para transcender esta categorização de Esquerda e Direita, porque às vezes não ajuda a clarificar aquilo que nós queremos ver clarificado.
Quanto à questão em concreto, em parte é verdade, mas reparem que as circunstâncias da época fizeram com que todos os partidos, praticamente, que se apresentaram com intenção de representação parlamentar quisessem jogar nesse campo, isto é, no campo da Esquerda.
Sabemos que há razões históricas para isso, o rótulo da Direita e a identificação com o espaço político da Direita tinha sido manchado por uma autocracia que tinha sido destruída com a Revolução do 25 de Abril. Evidentemente, ninguém queria recuperar aqueles tempos, queríamos caminhar para uma sociedade aberta, de estilo europeu, enfim o Salazarismo era visto como o contrário disso tudo e portanto, houve uma reacção natural de identificação, pelo menos em questão de linguagem política, com a Esquerda.
Mas é importante ver que, quando o PSD aparece e sobretudo se olharmos para os seus conteúdos programáticos e isso ficou muito mais vincado quando a AD chega ao poder, vemos nitidamente que o projecto político de Sá Carneiro era uma demarcação muito clara naqueles tempos de ruptura, por isso não foi gradual, ou progressiva, com todos os partidos da Esquerda, totalitários evidentemente, mas também socialistas-democratas como eram designados naquela altura o PS e seus satélites.
Por isso, também não nos podemos deixar equivocar pela referência à expressão de Centro-Esquerda, para pensar que no fundo o que havia ali era um espaço hegemónico dominado pelo PS e que o PSD era uma espécie de apêndice político e intelectual do Partido Socialista. Não é isso o que Sá Carneiro fez, nem é esse o seu legado.
Podemos falar de exemplos concretos, mas desse ponto de vista, reparem que evidentemente os partidos políticos têm de estar abertos à realidade que é aberta e dinâmica, têm de se adaptar às circunstâncias históricas e o PSD teve de fazer isso relativamente ao PSD que existia em 1974, o PPD. Mas vejam que, por um lado, não é justo dizer que desapareceram as preocupações sociais.
Pela minha parte, não me revejo, de todo, nessa descrição da evolução do PSD. Agora, talvez seja hoje mais claro do que era então que mesmo ao nível da transmissão de conteúdos simbólicos e da linguagem que se utiliza, teria de haver essa separação entre o Centro-Esquerda e o espaço político ocupado pelo PSD.
Ainda há pouco, estávamos a ter uma conversa muito rápida aqui à mesa, onde eu estava a tentar convencer os vossos colegas e amigos que o PSD teve sempre e deve continuar a ter uma vocação de partido popular, daí a referência ao facto de o PSD ser um partido interclassista, que deve estar muito próximo das aspirações, vocação, interesses e necessidades dos portugueses.
Recentemente, foi aprovado em Congresso um programa do PSD, que não é novo, é, digamos, revisto e actualizado, do partido como um todo e onde se sugere que existam muitas continuidades com o programa originário. Isso é importante, há uma identidade que permanece, mas por outro lado há inovações conceptuais importantes que aparecem no programa, que não são contraditórias com o legado, nem muito menos com o espírito da liderança que foi impresso por Sá Carneiro no final dos anos 70 neste partido.
Dou-vos um exemplo: um dos conceitos que aparece no programa e que pode ser considerado mais inovador é o de realismo político. O PSD identifica-se a si mesmo como partilhando de uma disposição essencialmente realista. O que é que isto quer dizer? Reparem que a palavra pode ser enganadora, porque quando pensamos em realista, podemos pensar que estão a defender ostatus quo, que é a contradição com aspirar algo mais, ter ideais políticos que servem de instrumento crítico para a realidade de hoje, mas também serve de aguilhão para as conquistas que queremos fazer no futuro.
Mas não é isso que esse realismo significa, na verdade é até o contrário disso. Se vocês lerem o novo programa aprovado recentemente, vão ver que existe uma conciliação dessa concepção de realismo político, por um lado, e de personalismo por outro.
Sabem que a questão do personalismo radica na dignidade da pessoa humana. Isto é, nós todos nascemos com uma igual dignidade. Isto significa que as pessoas não têm um preço, têm um valor que é incomensurável (não podemos comparar com mais nada), mas também significa mais do que o mero enunciado da igualdade entre todos e, nesse aspecto, devemos ser mais radicais nesta questão do que qualquer partido de Esquerda, que é partindo da igualdade de todos homens e mulheres no que diz respeito à sua dignidade, ver que se somos um partido personalista, isso significa que cada uma das pessoas que vivem no Mundo é uma pessoa única e irrepetível.
Isto é, não podemos trocar uma pessoa por outra e isto tem consequências, reparem, vocês dizem "nós somos todos iguais” na medida em que partilhamos a mesma natureza, com certeza, na medida em que temos as mesmas necessidades biológicas, com certeza, mais, na medida em que temos todos os mesmos direitos constitucionais, isso é muito importante. Mas nós queremos ir além disso, queremos ver em cada uma das pessoas um ser único e irrepetível que tem a capacidade de dar contributos que são únicos e irrepetíveis e também necessidades que são únicas e irrepetíveis e nós temos de atender a isso.
Reparem na janela extraordinária que isso nos dá: somos assim, simultaneamente, um partido que afirma a igualdade de todos os homens e todas as mulheres e, ao mesmo tempo, a sua liberdade. Por isso, o projecto político – e, nesse aspecto, estamos aqui a falar de preocupações sociais de primeira ordem – que o PSD tem de levar a cabo, pelo menos enquanto se revir neste programa e neste tipo de ideário, temos de perceber que as políticas do PSD quando está no Governo, ou quando está na oposição, têm de corresponder a estes dois aspectos, à igualdade e à liberdade, e que os dois são absolutamente inseparáveis.
Podemos, aqui, ser mais radicais que qualquer partido de Esquerda que normalmente se contenta com a ideia de igualdade. Mas a partir do momento em que nós queremos apresentar as pessoas apenas como seres iguais – e aqui podemos falar da igualdade de direitos, da igualdade de resultados -, nós estamos a um passo muito curto de passar a tratar as pessoas como objectos.
Por isso, nós temos de dizer que as pessoas são todas iguais, mas mais do que isso, que elas são todas únicas e irrepetíveis. Isso é muito importante. Como é que isto se liga ao realismo político? Se, por um lado, o realismo político traduz esta nossa valorização da responsabilidade política, nós percebermos que há limites para o que os governantes têm ao seu dispor, que as circunstâncias históricas e temporais impõe também restrições que não podemos ignorar, mas ao mesmo tempo nós reconhecemos a realidade e a ideia de realismo, a realidade da dignidade da pessoa humana – que tem aquelas consequências que vimos há pouco -, e reconhecemos igualmente a realidade do Mundo do contexto de que essas pessoas se precisam de rodear para florescerem, para levarem a vida que querem, para conseguirem prosseguir os projectos que concebem para si próprios.
Isto é uma discussão imediata a propósito do que estávamos a dizer sobre a Regra de Ouro, porque também aqui se trata de nesta disposição de realismo político percebermos que o contexto de florescimento de cada um de nós requer estruturas que têm de estar presentes para podermos evitar os males que queremos evitar e colher os bens de que queremos apropriarmo-nos.
Há pouco, vimos como a questão financeira é aqui essencial, como os portugueses estão neste momento a perceber, nós estamos a aprender da pior maneira como o reconhecimento da realidade do mundo que envolve as pessoas e da dignidade da pessoa humana tem estas consequências políticas.
Mas, enfim, esta questão do realismo político leva-nos muito longe e como vos disse também não quero dar respostas muito longas de cada vez, pois a ideia aqui é termos uma conversa aberta e rápida, mas talvez possamos rebuscar o tema mais adiante, é um tema que me agrada.
Dep.Carlos Coelho
Passamos à segunda pergunta, será a Inês Santos do grupo Encarnado.
Inês Madeira Santos
Boa noite, em nome do grupo Encarnado queria agradecer a sua presença.
A nossa pergunta foca-se no conceito da autoridade do Estado, que vai ao encontro de um tema já abordado por si.
Fazendo uma pequena introdução: num regime democrático reconhecemos um Governo e a sua autoridade mesmo quando a sua ideologia difere da nossa. Actualmente, no entanto, algumas das opções tomadas pelo Governo, não só pela sua dureza, mas pela incompreensão que geram, podem transfigurar a ideia da autoridade na aplicação do poder pelo poder.
Portanto, a nossa pergunta é: de que forma é que no actual contexto de crise e neste processo democrático podemos evitar que isso aconteça. Por exemplo, quando ainda ontem se lia uma notícia do Gabinete de Comunicação do PSD acerca dos assessores do Governo poderem vir a receber o subsídio de natal este ano?
Obrigada.
Miguel Morgado
Há um grande equívoco à volta dessa questão dos subsídios e não me vou meter nessa discussão. O resto da pergunta é bem difícil. Não sei bem por onde havemos de começar, mas vejam que em primeiro lugar temos de separar e distinguir entre a ideia de autoridade e de poder. São duas coisas diferentes, não é? Sei que muitas vezes tratamos a autoridade como sinónimo de poder.
Tive a oportunidade de escrever um livro pequeno sobre essa questão e fiz várias vezes alusão a sinónimos de autoridade que de certa forma a degradam e a esvaziam. Em grande medida isso pode já ser um reflexo da própria crise. Uma coisa é nós percebermos que numa sociedade livre e aberta, que nós queremos que Portugal seja, que haverá sempre divergências relativamente às decisões emanadas do poder político. É isso que devemos esperar de uma sociedade democrática, quando isso não acontecer é porque algo de errado está a acontecer com essa sociedade.
Aliás, quando o regime democrático foi pensado para ser concretizado na realidade dos povos europeus e na América do Norte, deu isso como uma espécie de pressuposto e de garantia, teria de ser assim, que o Governo teria de sofrer sinais provenientes da sociedade, naturalmente ele gostaria que fossem de apoio, mas também tem de haver de contestação.
Porque é que nós divergimos? Alimentamos sempre esta esperança de que gostaríamos que houvesse grandes consensos, em Portugal e fora, e às vezes sentimo-nos um bocado irritados: porque é que estamos sempre a discordar e a discutir, não é?
Vejam que se vocês forem examinar escritos dos anos 20 e 30, a grande crise da democracia liberal na Europa, vão ver que é uma crítica feita contra a própria democracia, dizia-se que a democracia não servia, etc., precisamente porque inflama as divergências, cava as dissensões entre as pessoas.
Ora, a ideia tradicional de uma comunidade política próspera e feliz era a ideia da harmonia e concórdia. Se forem ver as utopias que foram escritas nos últimos séculos é quase uma constante da sociedade utópica é que desaparecem essas rivalidades de opinião. Agora, vejam que essa harmonia e concórdia só podem ser edificadas num mundo em que as pessoas gozam de liberdade se nós lhes negarmos essa liberdade.
Por isso, temos de resistir a esta sedução de uma sociedade imaginária que é marcada sobretudo pelo consenso e pela concórdia. A divergência faz parte do debate público democrático. Há duas razões pelas quais é importante que isso permaneça, sem estar a dizer que as manifestações que grassam pelo país têm razão de ser, tenho uma opinião de que não têm razão de ser, mas enfim, é a minha opinião. Do ponto de vista mais genérico, porque é que é importante, ou por que temos de preservar a capacidade para a divergência?
Ou do ponto de vista mais primário, porque é que as pessoas divergem umas das outras? É por uma razão muito simples: é natural à nossa própria condição; temos concepções de justiça, do que é bom, do é mau, para nós e para o colectivo, que são diferentes e é inevitável que assim seja. Por isso, enquanto houver concepções diferentes teremos sempre divergências políticas, é inevitável.
Além disso, existe um papel muito salutar nesta questão da dissensão, divergência e crítica, que se resume desta maneira, simplificando um pouco: é muito difícil para nós, quando estamos a evitar sermos juízes em causa própria, sabermos se temos razão por exemplo relativamente à nossa concepção de justiça. É muito difícil para nós, quando fazemos políticas sabermos se são com efeitos positivos, ou negativos, por muitas razões que agora não podemos estar a discutir aqui.
Ficarão surpreendidos com a quantidade de pessoas que pensaram nestes problemas antes mesmo de haver democracia, quando se podia apenas entendê-la em termos puramente intelectuais. Era muito importante garantir que esta capacidade crítica ficasse viva, não só nas universidades, na investigação científica, mas também na política, por isso é como se nós tivéssemos uma grande dificuldade me compreender a verdade e bondade das políticas que queremos, das concepções de justiça que partilhamos e para isso precisamos de desafio, que tem de vir de outra pessoa, que não concorda com o nosso ponto de vista.
Uma vez mais, isto prende-se com a geração de possibilidades para todos os eleitores e cidadãos democráticos, ou numa república democrática como é a portuguesa, de terem acesso a escolhas políticas genuinamente alternativas. Isto é importante. Uma das propriedades do realismo político que se prende um pouco com esta questão aponta nesta direcção. Nós estamos nesta tentação que ainda grassa na Europa e nos partidos, sobretudo à Esquerda, fora e dentro de Portugal, esta ideia de que se nós afinarmos uma teoria política que seja extraordinariamente verdadeira, sofisticada, nós finalmente conseguiremos desenhar uma sociedade justa e próspera e feliz.
Aqui nasce a tentação ideológica. Têm de evitar a palavra ideologia e sobretudo, mais do que isso, a tentação ideológica e o remédio para ela que tantos males causou no Mundo nos últimos 150 anos, é precisamente esta disposição que aparece no programa do PSD sobre o realismo político. Além da tentação ideológica, outra coisa que está associada é termos uma espécie de filosofia da história determinista. Esteve muito na moda, agora menos e basicamente era lermos o que se passou no passado e projectarmos no futuro uma espécie de caminhada triunfal da Humanidade rumo ao ideal que nós tínhamos escolhido.
Estão ver? Mas isso condicionou desde logo todas as opções políticas, porque nós tínhamos de forçar a história da Humanidade àquela marcha que nós tínhamos, no sossego das nossas próprias faculdades intelectuais, desenhado para o futuro. Portanto, a ideia aí é fazer exactamente o contrário.
Porque é que nós chamamos isso de realismo político? Porque uma das características da realidade humana é o facto de ela ser dinâmica e aberta. Isto parecem lugares comuns, mas se vocês pensarem são coisas mais profundas do que podem parecer.
Se ela é dinâmica quer dizer que está em constante transformação, que não está estagnada, que não está fossilizada e por isso não podemos aspirar a um ponto da marcha da Humanidade em que todos os problemas foram finalmente resolvidos, todas as transgressões foram sanadas. Isso é uma ilusão, mais do que uma ilusão, porque como eu já vos disse isso condiciona as nossas opções políticas, depois fazemos revoluções, fazemos Governos que querem encaixar à força a sociedade nessas categorias.
Por um lado, temos esta constatação de que a sociedade é dinâmica, mas mais do que isso a realidade é aberta e isto significa que nós é que vamos construindo a nossa própria história, que ela não está determinada por nós. Que consequências políticas isto tem? Isto é um mundo de consequências políticas e que nos afasta muito daquele que é o enquadramento dado pelos partidos da Esquerda, quer os da extrema-esquerda, quer os da esquerda democrática.
Porque a partir do momento em que adoptamos esta posição, temos de, quando estamos no Governo, ou na oposição, ter nas nossas propostas a configuração de uma sociedade adaptada a estas características desta realidade, isto é, dinâmica e aberta e não fazer nem o presente refém do futuro, nem o futuro refém do presente.
Isto é muito importante e implica um compromisso incondicional da nossa parte com a liberdade de cada um. E como estão a ver voltamos ao início da discussão com a questão da dignidade da pessoa humana, o facto de ela não só apontar para a igualdade entre todos, mas cada uma delas ser única e irrepetível e por isso as instituições, as estruturas do Estado e civis, terem de estar preparadas para a manifestação dessa liberdade. Nós, aqui, estamos falar de valores políticos e sociais de primeira ordem.
Claro que é muito difícil acertar sempre em circunstâncias normais, ainda mais difícil levar a cabo este – se quiserem chamar – programa político num período como o que estamos a viver de emergência nacional em que as restrições às nossas escolhas, enquanto partido que está numa coligação, são ainda mais apertadas do que são em tempos de a chamada normalidade.
Dep.Carlos Coelho
Terceira pergunta: Liliana Soares do grupo Roxo.
Liliana Soares
Boa noite. Em 1974, o idealismo estava à flor da pele de quem tinha sede de democracia. O 25 de Abril trouxe ao nosso país muito dinamismo político-partidário, lutava-se nesta altura pela solidificação da democracia, pela liberdade do homem e pelo Estado de Direito. Hoje, a sociedade, em especial as novas gerações, estão focadas noutros pólos de interesse que se prendem com o Ambiente, com as Novas Tecnologias, com a ausência de fronteiras culturais, a Globalização e sobretudo preocupados com a falta de emprego.
Permita-me, desta forma, perguntar se estarão os partidos políticos preparados para responder às necessidades dos jovens de hoje? E não estará a rigidez ideológica que nos sustenta a ser o principal motor para o afastamento dos jovens da política?
Miguel Morgado
Bem, eu tentei dizer – já percebi que não tive muito sucesso –, que a ideia de realismo político é precisamente o antídoto de que nós precisamos para resistir a essa sedução ideológica. Nesse aspecto, penso que é um dado importante da vida deste partido, reconhecer-se numa ideia desse tipo.
A minha resposta a essa pergunta tem que se considerar que começa na questão que eu dei há pouco sobre o realismo político. Precisamente por eu achar que esse é um problema importante é que tentei sublinhar esta coisa do realismo político, que pode parecer um pouco esotérico, ou um bocado abstracta demais, mas a meu ver não é. Veja, agora, como é interessante, nós, na sociedade democrática divergirmos a propósito de tudo e de nada.
Divergirmos evidentemente na bondade, ou maldade, das políticas que são propostas, mas também quanto à veracidade das teses que são enunciadas acerca da própria realidade social. A vossa colega disse que os partidos são caracterizados por uma grande rigidez ideológica. Reparem que se vocês lerem os politólogos que andam aí à solta na Europa, no Mundo e em Portugal, o que é que eles nos dizem?
Que é verdade que há partidos que estão numa completa rigidez ideológica. Em Portugal, até sabemos identificar assim de repente quais são, não vale a pena estar agora a nomeá-los. Mas o que esses analistas dizem acerca dos partidos evidentemente que estão ali no arco da governação, em Portugal e fora, estão mais ao Centro a disputar o eleitorado, digamos assim, moderado. O que os comentadores dizem é que há excesso de pragmatismo e que era tão bom que houvesse mais rigidez ideológica.
Por mim, fico muito satisfeito que da sua parte esteja frustrada com a rigidez ideológica que ainda existe. Acho que, enfim, sempre tentei dizer isto aos meus alunos e quando sou convidado para ocasiões como esta, que é uma boa teoria política aquela que recomenda a prática.
O que é que isto quer dizer? Que os homens e as mulheres são seres práticos que vivem no mundo da prática, isto é, o mundo humano é constituído por coisas, objectos, instituições, relações, estruturas, que resultam das nossas intenções, vontade e exercício da nossa acção intencional, daí estarmos sempre a falar de prática.
O meu ponto há pouco era que não podemos nunca deixarmo-nos fascinar pelas ideias políticas ao ponto de pensarmos que podemos partilhar a realidade prática por uma dessas ideias. O sentido das minhas respostas até agora – pareceu-me, posso estar enganado –, ia precisamente ao encontro da sua preocupação.
Isto não é recaída no mero pragmatismo, como muitas vezes se diz. Aqui a questão é tentar pensar: qual é a função de um partido político? E aqui não vale a pena vir com aqueles textos canónicos que ensinam nos cursos de Ciência Política que os partidos têm as funções A, B, C, numa coisa muito esquemática, onde há depois um autor que ainda acrescenta; isso não tem interesse nenhum. Numa sociedade democrática os partidos basicamente devem ter duas funções: não é certamente tornar as sociedades reféns das suas ideias, não é isso, é representar os povos, neste caso estamos a falar do PSD que tem a função primordial de representar o povo português.
O que é que isto significa? Que tem de estar próximo da experiência quotidiana dos portugueses. E de quais portugueses? De todos os portugueses, dos pobres e dos ricos, da classe média, dos que vivem no Litoral, Norte, Sul, não importa onde; tem de estar próximo da experiência quotidiana dos portugueses.
Depois, qual é a função que sobra e que é importante também? Olhar para as circunstâncias das experiências dos portugueses e não vê-las como dados, como uma espécie de prisão da qual nós não podemos sair, não; olhar para essas circunstâncias como contextos de escolhas que temos para fazer e escolhas que devem ter em conta a experiência quotidiana de todos os portugueses e o efeito que essas escolhas têm no futuro.
Uma vez mais, vejam, como entra aqui – e não é uma questão de obsessão – o realismo político. Onde é que nós somos realistas outra vez? É que na consideração dos efeitos das escolhas que nós fizemos, há um teste da realidade: se as escolhas tiveram um efeito positivo, ou negativo.
E nós temos de reconhecer esse teste. Por isso, parece-me que essa disposição é o contrário da rigidez ideológica, mas também que não se afoga naquilo que muitas vezes se vê, sem razão, que é uma espécie de puro exercício pragmático do poder. Nós também temos em Portugal a pura experiência do que é que nos conduziu o exercício pragmático do poder, não é?
Por isso, há aqui uma espécie de – não lhe podemos chamar de terceira via, porque isso ficou com a identidade merecidamente manchada – um modo alternativo e, se pensarem bem, até radical, no sentido da palavra, de ir à raiz do problema, de olhar a realidade e tentar transformá-la neste sentido de que vos falei, de que as circunstâncias impõem um contexto próprio das nossas escolhas e que as nossas escolhas produzem efeitos que devem ser testados pela realidade que é, uma vez mais, a experiência dos portugueses.
Dep.Carlos Coelho
Muito bem. Chega a altura de agradecer ao grupo Rosa e em especial à Mariana, a coordenadora, pelo facto de nos terem recebido na vossa mesa e agradecer à Tânia por nos ter convidado para o seu aniversário.
Passo agora a palavra à coordenadora do grupo Rosa, Mariana Contreira.
Mariana Máximo Contreira
Mais uma vez, boa noite a todos. Em nome do grupo Rosa, como grupo anfitrião, queria dirigir um "muito obrigado” pela sua presença e por ter partilhado este jantar connosco.
A minha pergunta vai muito no sentido daquilo que já tem sido dito a par desta preocupação constante de estarmos a ser governados por entidades externas. Embora haja este conjunto de ideias partilhado por esta sala cheia e por muitos fora dela, e estejamos com o PSD actualmente no Governo, estamos a ser governados por um memorando que não foi por nós escolhido.
Por isso, a minha pergunta é: será que faz sentido ainda dizer nesta altura em que há uma coligação, que o PSD mantém os seus ideais nesta governação, ou se, por esta altura de intervenção externa suspendemos os ideais políticos; eles estão suspensos, ou não?
E também gostaria de saber se o sistema económico acaba por delinear o sistema político e não o contrário?
Obrigada.
Miguel Morgado
Se, no fundo, fica suspenso o nosso ideário em tempos de emergência social, a minha resposta é não, que não fica.
O Primeiro-Ministro já disse várias vezes duas coisas que são extremamente importantes e uma delas já disse aqui, que é o facto de evidentemente nestas circunstâncias as nossas escolhas estão sujeitas a restrições muito severas. É verdade, não há como negar isso.
Mas, não há apenas uma única maneira de lidar com esta emergência nacional. É importante que isso também fique claro. Se há coisa que este Governo não diz é que não há alternativa às políticas do Governo. Há, achamos que são desastrosas, que podem conduzir o país a uma situação inominável, mas há alternativas.
O modo como nós respondemos a esta emergência nacional, sabendo que as nossas escolhas estão sujeitas a restrições, como eu disse, fortíssimas e por isso não temos uma margem tão ampla quanto gostaríamos que fosse, mas reparem que é sempre um erro em política supor-se que os meios que temos ao nosso dispor para levar a cabo os fins que pretendemos são ilimitados – isso é sempre um erro.
Lá está uma vez mais, a sedução ideológica que assombrou o século XX foi sempre essa de que não havia limites aos meios que temos à nossa disposição para levar a cabo os fins radiosos que nós temos: da Felicidade, da Justiça, a Fraternidade no Futuro.
Então e porque é que esses meios não eram mobilizados? Porque havia uma classe opressora que não permitia as pessoas de espírito aberto e justo acederem ao poder, ou porque alguns povos estavam sob o jugo imperial, eram colónias e que uma vez emancipadas desse jugo ou uma vez vencida a classe opressora, nós nos renderíamos a esta evidência de que os meios que temos à nossa disposição são ilimitados. Nunca são! Por isso é que temos de fazer escolhas.
Há este aspecto que tradicionalmente se chama de trágico das nossas escolhas, incluindo as escolhas na nossa vida pessoal, mas que se aplicam à política também que é quando eu escolho um determinado caminho eu estou a sacrificar todos os outros caminhos. Isso é importante que esteja sempre presente na nossa mente.
Mas, ao mesmo tempo, como estava a dizer, há um modo que é o este Governo tem tentado fazer, de responder à emergência nacional, que respeita, cultiva e promove as ideias e os valores que nos caracterizam como partido.
Só que, para contextualizar o que aconteceu no último ano, quando o PSD e o seu líder se apresentaram a eleições, a mensagem aos portugueses nunca foi de "votem em nós para resolvermos um problema como nunca tivemos”, não é? Em parte foi isso, temos de resolver este problema, mas a mensagem fundamental do partido na altura e sobretudo do Presidente do PSD na altura, foi quePortugal precisa de mudar.
Portugal precisa de mudar, não podemos continuar na permanente degradação das nossas instituições, da classe média, da estrutura produtiva. Era olhar para o país em 20, ou 30 anos, num declínio absolutamente irreversível. Nós temos de mudar e foi essa, sobretudo, a mensagem de Pedro Passos Coelho na altura, quando estava na oposição e em véspera de eleições. Essa mudança tem um sentido, aponta para um certo tipo de sociedade, um certo tipo de relação entre o Estado e o Cidadão, um certo tipo de concorrência entre as empresas, por exemplo, ou entre os grupos económicos e o Estado.
Ora, uma grande parte do programa do Governo que está a ser executado dirige-se precisamente para essa mudança, no sentido de uma sociedade mais próspera, mais livre e mais justa que é um ponto que normalmente não se refere.
Reparem que aquilo que se convencionou chamar-se de reformas estruturais que em Portugal nós ouvimos falar disto tantas vezes que às vezes a própria expressão torna-se banalizada, mas elas têm precisamente este propósito. Como a própria expressão indica nos proporcionar estruturas onde se alicerce uma sociedade mais próspera, mais livre e mais justa.
As políticas do Governo muitas vezes são de resposta à emergência, mas diria que a maior parte delas dirigem-se a esse projecto de um alcance maior e que diz respeito precisamente a reparar os bloqueios, injustiças, deficiências, negação de oportunidades a todos os portugueses, de realizarem os seus projectos e participarem na vida económica, este é o projecto fundamental deste Governo.
Claro que, em cima disso, temos uma emergência económica e financeira, que em certos aspectos nunca ocorreu nem sequer na história recente da democracia portuguesa e por isso existe aqui sempre um equilíbrio e ajustamento que é necessário fazer entre a resposta a curto-prazo que é precisar fazer e a longo-prazo.
A meu ver e uma vez mais sou muito parcial aqui, mas o grande mérito da interpretação dos nossos tempos, que é feito pelo Primeiro-Ministro, é precisamente esta: já não existe esta falsa janela de separação entre o que são as soluções de curto e de longo prazo. As reformas estruturais inserem-se precisamente neste contexto.
Agora, a outra pergunta é mais complicada. Sempre fico um bocado irritado e, por isso, vou-me irritar com a minha vizinha de Setúbal, com esta ideia de que vivemos sob o império da economia sobre a política. É uma coisa que me irrita e já me irritei ao longo de muitos anos com muitas pessoas acerca deste problema. É preciso perguntar porque é que isto é assim, não é? E é óbvio que não há apenas uma resposta exclusiva, são complementares.
Mas uma parte da resposta tem de ser o quê? Reparem, temos uma novidade histórica dos últimos 130 anos no Ocidente e agora com a Globalização se espalhou para muitos países do Mundo, que é a responsabilidade dos Governos sobre a prioridade máxima das sociedades aumentarem os níveis de prosperidade material.
Aquilo que para nós parece ser tão evidente, que é: "quero mais crescimento económico, mais e melhores e empregos, que o PIB e a inovação cresçam, que haja mais empresas, etc.”; isto é algo que é muito recente na história da Humanidade. Mas isto tinha imediatamente consequências sobre a interpretação e o papel da acção política.
Se esta é a prioridade das sociedades e se é o primeiro e às vezes o único mandamento da política dos povos, então é difícil não admitir que a economia teria de ganhar prioridade sobre tudo o resto.
Mas não por causa de uma conspiração de Wall Street, ou de grupos mais ou menos conspirativos espalhados pelo Mundo, os mercados financeiros, mas porque nós quisemos que o mercado se convertesse na crescente dos níveis de prosperidade para todos. Muitas vezes faço esta comparação, um pouco absurda, entre a democracia que existe hoje na Europa e a democracia de Atenas, na Grécia Clássica.
Mas se forem vasculhar nos livros que retratam a democracia ateniense irão lá reparar que poucas vezes as discussões que havia na assembleia democrática onde todos os cidadãos tinham assento, muito poucas discussões eram sobre se a economia iria crescer para o ano, ou se haveria melhores empregos para os jovens. É uma novidade absoluta, por isso temos de pensar no que é que aconteceu, nós, cidadãos numa democracia moderna, para querermos que a economia fosse de facto a prioridade absoluta da sociedade e da política.
São consequências inevitáveis da proclamação daqueles valores que consideramos que não podem ser sacrificados a tudo o resto, como por exemplo a igualdade e a liberdade.
E a partir do momento em que nós assimilamos a igualdade e a liberdade como valores condutores que não podem ser postos em causa, uma das consequências disso é que todas as pessoas têm um desejo legítimo, muito razoável, de viverem melhor amanhã do que vivem hoje. Mas isso implica uma nova configuração da política.
É fundamentalmente por razões políticas e morais que as democracias tiveram que colocar a economia como prioridade das prioridades. A negação destas prioridades, como às vezes ouço falar em Portugal e fora, que deveríamos regressar à primazia da política, mas reparem que a primazia da política conduziu a sociedades nas quais provavelmente nenhum de nós quereria viver.
Então, a nossa interpretação do que é a cidadania, do que é uma cidadania livre, quais as nossas aspirações, quais as reservas de liberdade e qual achamos que deve ser o papel de Portugal no Mundo, tudo isto, as respostas para estas perguntas configurarão o tipo de acção política que nós tivermos e é muito previsível de se saberem quais são. Queremos, de facto, melhores empregos, melhor nível de vida, que não haja pobreza entre nós, que haja mobilidade social, isto é, que uma pessoa que nasça pobre não esteja condenada a morrer pobre.
Não é? No fundo é uma espécie de reprodução daquilo que se convencionou chamar-se de sonho americano. E qual é a acção política para fazer isso? Bem, então, a acção política acaba por ficar norteada por valores económicos. Mas, a Economia não tendo leis no sentido estrito do termo, que seria exagerado dizer, na verdade tem regras que constituem uma esfera própria da acção humana, com valores que também têm de ser respeitados sob o risco de termos um implosão económica, como a que estamos a assistir.
Logo, temos de ver se não foram as nossas próprias escolhas que são eminentemente políticas e morais que não colocaram a Economia como prioridade do Estado.
Para terminar: sei que esta resposta não abrange a totalidade das reservas que foram aqui expressas. Sei, por exemplo, que aqui na ressaca da crise financeira internacional que tivemos em 2007 e 2008 e que na Europa permanece, nós tivemos um problema diferente, que diz respeito ao lugar do sector financeiro nas sociedades democráticas.
Agora, uma coisa é acharmos que houve uma exorbitância do alcance do poder e da capacidade até de chantagem do sector financeiro sobre a capacidade de escolhas das sociedades e que isso ocorreu nos últimos quatro anos – não vejo como negar uma coisa dessas -, mas daí não podemos concluir que, por exemplo, se tenha de optar um modelo de absoluta repressão do sector financeiro. Mais, até diria que a resposta que o sector financeiro gerou sobre as sociedades ocidentais, aponta para a necessidade de se democratizar precisamente a actividade financeira.
Termino, deixando-vos esta ideia que me parece importante: a actividade económica numa economia de mercado ainda para mais num futuro que é indeterminado, contém riscos. Quando dizemos que é uma actividade com riscos significa que há pessoas que vão arriscar e vão perder, certo? O que é que é mais aflitivo do ponto de vista da Justiça, das nossas intuições comuns de Justiça, quando olhamos para o que aconteceu no Mundo nos últimos quatro ou cinco anos? É que aparentemente há sectores da sociedade que estão protegidos desses riscos que assumiram voluntariamente.
A maior parte da população não está protegida desses risco e nós vemos, pessoas que perdem os empregos, a capacidade aquisitiva, os padrões de consumo descem, todos nós pagamos – como se costuma dizer – a crise. O mais avesso às nossas concepções de Justiça e foi isso que se passou nestes últimos quatro anos, é que há um, ou dois sectores que foram protegidos desses riscos. Mas então é o que eu estava a dizer há pouco: a solução é a democratização desta disparidade que existe relativamente aos riscos económicos.
Eu acho que a conciliação entre as questões, sobretudo financeiras e a democracia ocidental, passa precisamente por esse caminho.
Dep.Carlos Coelho
Muito bem. Vamos fazer um leque de duas perguntas: Ana Lúcia Prior do grupo Verde e o José Miguel Simões do grupo Amarelo.
Ana Lúcia Prior
Muito boa noite. Em primeiro lugar, em nome do grupo Verde, endereçar um agradecimento especial ao professor Miguel Morgado pela sua conferência.
A nossa questão é a seguinte: muita da criação, ou expansão, de boas práticas com sentido patriótico, ou educativo, tiveram ainda origem no anterior regime. Muitas delas foram aprimoradas e amadurecidas pelo regime democrático que tantas vezes recorreu ao corporativismo institucional no início da sua solidificação e substituição de carências sociais.
Acontece que hoje sentimos cada vez mais uma falência da credibilidade que a sociedade tem e atribui às instituições em geral, nomeadamente as judiciais. Estamos perante uma falência das instituições em geral, políticas, judiciais, clericais, que tantas vezes serviram para equilibrar a sociedade? Estamos perante um novo paradigma? Se sim, qual, ou este ainda tem um longo caminho a percorrer?
José Miguel Simões
Muito boa noite a todos. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a presença do senhor professor aqui hoje e a humildade a amabilidade que teve para aceitar as nossas perguntas e também nos ouvir e ajudar um bocadinho a compreender melhor a nossa realidade.
Curioso dos curiosos foi a nossa pergunta ter muita a ver com o livro preferido do senhor professor, "O espírito das leis” de Montesquieu e foi pura coincidência, o destino levou a esta pergunta: numa página, este autor, neste clássico, reflecte que a república tem, entre outras certamente, duas características, a paz e a moderação.
Hoje em dia, que tipo de paz é esta na república que hoje temos? Será que não é uma paz – desculpe a expressão – às vezes um bocadinho falsa? Será que esta moderação não é, de alguma forma, um descrédito que vemos na nossa classe política e este receio de não conseguirmos – como referiu na sua primeira intervenção – esse elevar da qualidade da nossa democracia?
Portanto, a pergunta que deixamos é para perceber que tipo de república hoje temos?
Miguel Morgado
Tenho este problema de ser um pouco picuinhas quando entram na minha área de actividade académica e, por isso, não levem a mal, não estou aqui a querer dar-vos nenhuma aula de Montesquieu, não é essa a minha ideia, mas vou fazer uma espécie de enquadramento, muito rápido, sobre essa questão que me colocou.
Nestas coisas é preciso ter – e aprende-se muito bem com "O espírito das Leis” de Montesquieu – uma perspectiva histórica dos nossos problemas. Muitas vezes estamos de tal maneira afogados no presente e nos problemas que nos afligem que não somos capazes de ver em perspectiva e ajuda muito vê-los em perspectiva. Aí, o socorro que temos, mais imediato e muitas vezes frutuoso, é encontrarmos uma perspectiva histórica.
O que Montesquieu diz sobre as repúblicas está a falar sobre um certo tipo de repúblicas que são as modernas. Significa, então, que havia repúblicas antigas. É, é verdade. E das antigas dizem que elas eram belicosas e que é preciso ver os gregos das repúblicas antigas como uma sociedade de atletas e combatentes. As pessoas eram criadas pela república para serem guerreiros. Por isso, as duas repúblicas que aparecem nesse paradigma é Roma republicana e Esparta e aí não havia moderação. Havia o cultivo dos valores marciais, da austeridade, não era a austeridade como a nossa, era mesmo a sério.
Então, as repúblicas modernas tal como Montesquieu as apresenta são como uma espécie de inversão das repúblicas antigas. Ambas são repúblicas, mas têm uma natureza diferente. O que é mudou de uma república para outra? Várias coisas mudaram, mas há um factor que é crucial para Montesquieu que é a economia de mercado.
Portanto, simplificando e exagerando um bocadinho, o que muda o cariz belicoso, guerreiro e imoderado das repúblicas antigas é a introdução da economia de mercado. Então, mas temos de perceber como é que a economia de mercado mudou o comportamento dos homens. Isto dava uma longa discussão, mas tentem reparar que o tipo de hábitos e comportamentos a que uma economia de mercado genericamente faz apelo consiste precisamente numa certa ideia de pacificidade, evitar o violento com os outros e, por outro lado, de contenção, moderação, disciplina e frugalidade até.
Esta era a ideia de Montesquieu para fazer essa contraposição de umas repúblicas para as outras. O que é que ele diz sobre a chegada dessas repúblicas modernas? Diz que é bom, porque o sofrimento que as antigas causaram é enorme. Mas, ao mesmo tempo, ele também dizia uma coisa, para verem como as nossas escolhas todas, políticas e históricas, fazemo-las sempre com um preço que pode ser um preço que estejamos dispostos a pagar, mas é um preço e convém que estejamos conscientes de que o estamos a pagar porque escolhemos A ou B.
Qual o preço que as repúblicas modernas pagaram? No entender dele, foi uma certa ideia de grandeza do Homem. Então, por moderação e paz trocámos grandes ideais de magnanimidade. É a tese dele. Se querem saber mais, leiam o livro. Hoje, já vimos de que maneira é que deve ser enquadrada a paz das sociedades e reparem que não é uma ponte de concórdia em permanência entre as pessoas, já vimos que isso não é possível e não é desejável.
Queremos é manter o conflito e a divergência política dentro de certos limites. A experiência democrática que nós temos, de democracias que levam mais anos que a nossa que é recente, é uma história de sucesso. Não sabemos o que o futuro reserva Às democracias desse ponto de vista, mas também não devemos exagerar a natureza e magnitude dos problemas que temos hoje. Por exemplo, como eu estava a dizer, ler Montesquieu é importante porque ajuda a ter uma perspectiva histórica e a relativizar os nossos problemas.
Quanto à crise das instituições, é uma questão difícil de facto. Uma vez mais remete para um problema que tentei abordar noutra ocasião que é a questão da autoridade. Aquilo que nós entendemos como crise das instituições é muitas vezes uma crise da autoridade dessas instituições. Não me vou alongar com isto, mas queria só deixar esta ideia convosco: a autoridade é um fenómeno relacional que implica dois sujeitos.
Ou seja, um sujeito que tem intenções de autoridade, pode ser um sujeito colectivo, ou instituição, mas pode ser uma só pessoa que tem pretensões de autoridade e uma outra pessoa que vai ser o destinatário. Mas reparem que para que a primeira pessoa possa exercer autoridade ela tem de ser reconhecida pelo outro.
Essa questão torna-se ainda mais premente em sociedades democráticas, porque em sociedades democráticas presumimos que as pessoas são iguais e têm liberdade para pensar pela própria cabeça. Uma das faculdades da autoridade é que quando uma pessoa singular ou colectiva a possui produz uma verdade. A autoridade é uma sede de veridição. Enfim, vocês olham para a autoridade e vão à procura sobre a verdade de algum assunto nela e se lhe reconhecerem a autoridade, então a verdade que é produzida pela autoridade é assimilada por vocês exactamente como verdade.
Logo, tem de haver aqui um jogo dialéctico entre estes dois sujeitos. Quando as pessoas são vistas com igualdade e têm liberdade para pensar pela própria cabeça, é evidente que qualquer fissura, qualquer defeito numa dessas instituições tem repercussões mais graves sobre a autoridade, sobre o reconhecimento dela, do que por exemplo noutras sociedades onde a autoridade de uma instituição podia estar consagrada por um direito divino qualquer.
Isso aconteceu, na Europa, como vocês sabem em séculos passados, determinadas instituições, determinadas pessoas, era-lhes automaticamente reconhecida a autoridade porque estavam ligadas a uma instância superior a todos nós, mas aí estava posta em causa a questão da igualdade, estão a ver? Então, quando tínhamos um esquema triangular de concepção de autoridade os podres, os vícios, as fissuras das várias instituições não eram tão danosas para a sua manutenção e fortalecimento da sua autoridade, mas agora já não é assim, não temos uma relação triangular, mas sim de outro tipo, entre dois sujeitos iguais.
Portanto, diria que temos de fazer um esforço diário, hoje, amanhã, daqui por dez anos, 50 anos, de combate à crise das instituições, mas presumo que a crise das instituições seja uma espécie de acompanhante de viagem das próprias instituições democráticas, precisamente porque temos esta relação de reconhecimento de autoridade que é muito diferente da que tivemos no passado.
Por isso, não podemos deixar cair a crise das instituições num ponto de ruptura, evidentemente, e em certos aspectos algumas sociedades europeias, como em Portugal também temos uma crise muito grave nalgumas instituições e, portanto, exige que a tentemos reparar, mas em grande medida existe uma desconfiança dos cidadãos relativamente a determinadas instituições e pessoas que têm poder político e isso será, julgo eu, uma constante da vida democrática; temos de nos habituar a isso.
Dep.Carlos Coelho
No próximo ciclo de perguntas, temos o grupo Bege, com a Marta Tavares e o com o André Neves.
Marta Tavares
Boa noite. Em nome do grupo Bege, queria antes de mais agradecer a sua gentil presença aqui na nossa Universidade de Verão 2012.
Numa das suas intervenções públicas, defendeu que para além de problemas económicos e meramente financeiros, o que afectava na realidade o Estado social europeu era um problema demográfico. Neste sentido e num panorama nacional e de crise em que o foco está virado para a contenção orçamental, para a redução da dívida atenuada por uma imensa carga fiscal que todos os portugueses vivem, gostaria de lhe perguntar se este Governo já delineou alguma estratégia neste âmbito e se tem alguns incentivos para a natalidade.
Ou seja, podemos estar perante uma dicotomia: queremos incentivar a natalidade e acho que é necessário e urgente, mas por outro lado, temos uma taxa de desemprego completamente desanimadora. Se para os que cá residem, para todos nós e se calhar com um pouco de foco na juventude, não temos condições de empregabilidade e condições sociais, como incentivar a natalidade?
André Neves
Boa noite a todos. Gostava de voltar ao tema da Regra de Ouro, mas antes de fazer a minha pergunta gostava de dizer que considero que o dia em que os países europeus aprovaram a Regra de Ouro foi um dia muito importante para mim e para os da minha geração, por isso sou a favor da consagração na Constituição portuguesa.
Ainda assim, acho que há certas considerações que devemos ter e gostava de ouvir a sua opinião sobre isso. A primeira é que disse há pouco que é legítimo um partido ter uma pretensão de implementar uma política expansionista e que a Constituição deve permitir isso. O partido a implementar deve ser sério ao dizer que ela deverá implicar um aumento de impostos.
Não sou economista, sou jurista, mas aqui a percepção que eu tenho é que a história económica diz-nos que as políticas expansionistas levaram-nos até agora a esta crise e podiam levar a um aumento de receita pela circulação de dinheiro e do aumento do consumo pelos privados. Se é assim, estamos a assistir a uma inversão destas teorias económicas que tiveram por base da saída de outras crises anteriores. Gostava de ouvir a sua opinião sobre isso.
O segundo ponto é a imprevisibilidade e o pouco controlo que podemos ter por vezes sobre as contas públicas, porque pode acontecer que como uma Regra de Ouro consagrada na Constituição não possamos passar de um défice de 0,5% e a meio de um ano orçamental sejamos confrontados com uma crise financeira como a que aconteceu nos Estados Unidos, em que o consumo baixa de uma forma drástica. E aí a execução orçamental falha e a Regra de Ouro deixa de fazer sentido e desvirtuamos a Constituição, porque não a cumprimos.
Qual é a solução para isto? Porque estamos a desvirtuar a Constituição, pois é incontrolável de certa forma. Gostava de ouvir a sua opinião. Muito obrigado.
Miguel Morgado
Estava a ver se encontrava umas perguntas mais ligeiras, porque o Carlos está-me a dar sinais de pressa, mas vocês aqui não estão a dar tréguas. Carlos, a culpa não é minha, é deles.
São dois temas óptimos. A questão da natalidade sempre me foi um tema caro, é uma espécie de crise invisível de que já estamos a sofrer há alguns anos e que por alguma razão é difícil perceber porquê, mas a sociedade portuguesa acordou muito tarde para ela.
Isto é uma discussão que está em curso em muitas sociedades que têm um problema semelhante ao nosso, mas a nossa acordou muito tarde, em grande medida por razões ideológicas, mas também porque se calhar chegamos sempre muito tarde aos problemas que são importantes.
Estamos em grande parte a pagar por essa característica que nós temos de o nosso debate público incidir sobre epifenómenos e não sobre questões que são mesmo importantes.
Não vou falar do que é que o Governo pretende ou vai fazer, lamento, mas prefiro não falar sobre isso. Só queria dizer o seguinte: existe uma discussão hoje em curso, que é uma questão decisiva, em muitos países do Mundo, que é a de sabermos se são eficazes os incentivos que são dados à natalidade.
Nós temos neste momento um conjunto de seis ou sete países, que têm um incentivo forte à natalidade e ainda não é claro qual a eficácia dessas políticas. Temos experiências muito contraditórias. Temos, por exemplo, a experiência dos países escandinavos que não conseguiram resolver o seu problema demográfico, mas que inverteram pelo menos a gravidade do problema.
Em parte porque tem uma política mais agressiva de incentivos à natalidade. Mas que incentivos são esses? Será que são eficazes os incentivos directos às famílias, de natureza monetária? Há muita gente que não acredita que esses incentivos sejam eficazes. Ou será que esses incentivos deviam ser mais estruturais, por exemplo, há muita gente que diz que na Suécia um ponto importantíssimo foi de garantir que existem estruturas, nomeadamente creches, que permitem às mulheres conciliar a sua carreira profissional com a maternidade.
Mas outros países fizeram coisas diferentes: França fez outras coisas diferentes; Putin, por exemplo, começou há uns anos numa espécie de ressuscitar da política estalinista, aqui no sentido completamente neutral no termo, porque foi Estaline que gostava de fazer isso, que era dar condecorações às famílias numerosas. Neste momento, é dar um aperto de mão ao Putin e ganhar uma medalha. Há incentivos para todos os gostos.
Por um lado, o que eu queria era dizer-vos isto, que não existe nenhum consenso quanto aos incentivos à natalidade serem eficazes e nós também temos de medir isso.
Mas também temos de ver que há razões não-económicas para a nossa quebra demográfica. Não basta dizer que Portugal é um país pobre, pois há países mais pobres com taxas de natalidade superiores.
Outro ponto importante: a taxa de natalidade está em queda em todo o Mundo, com excepção de África subsariana; é verdade, está em queda por exemplo no mundo árabe, em queda acelerada mesmo. Em certos países de confissão islâmica, queda da taxa de natalidade o Irão ninguém previa porque foi abrupta, por isso há aqui um fenómeno qualquer, mais universal do que possamos pensar, que tem de estar integrado na resposta que possamos conceber nesta luta de contra esta crise demográfica.
Uma pequena parte da resposta, a meu ver, diz respeito a este fenómeno que todos nós conseguimos intuir nas nossas vidas privadas e sociais, que é aquilo que alguém chamou de aceleração do tempo social. Quer dizer, parece que vivemos em sociedades que têm um ritmo cada vez mais rápido. Temos, todos, um bocadinho essa impressão de que é uma sociedade onde apesar de os horários serem mais reduzidos do que eram há 50 anos parece que temos menos tempo para dispormos de nós próprios do que essas sociedades tinham.
Todos os ritmos, económicos, culturais, políticos, tecnológicos, parecem que estão em plena aceleração; vemos essa espiral do progresso tecnológico que parece ser sempre mais rápido e isso tem consequências sobre a estruturação das nossas vidas e sobre as nossas escolhas.
Diria que uma parte – uma vez mais não sei quantificar o tamanho dessa parte, mas é uma parte – do fenómeno de aceleração do tempo social é capaz de dar uma boa resposta ao porque é que nós passámos a ter menos filhos nos últimos 30 anos um pouco por todo o Mundo.
A resposta é insuficiente, mas deixem-me passar para a segunda pergunta sobre a Regra de Ouro. Em primeiro lugar, os países europeus ainda não aprovaram esta Regra de Ouro, não é? Alguns assinaram o tal pacto onde está contido o compromisso de cada um dos signatários transpor para a sua ordem jurídica interna a Regra de Ouro. O que significa que falta agora que a maior parte dos países dêem o passo de transporem a Regra de Ouro para a sua ordem jurídica interna, por isso nós ainda não temos a Regra de Ouro, a Europa ainda não a tem, o que tem de mais parecido, mas é uma regra europeia e não nacional, são as tais regras que vêm do Pacto de Estabilidade no seguimento do Tratado de Maastricht.
Foram feitas aqui duas críticas importantes à questão da Regra de Ouro. A tese de que uma política expansionista servia no passado, não só para nos tirar da crise, mas para aumentar paradoxalmente a receita fiscal do Estado; ou seja, com uma política expansionista aumentado o défice, diminuíamos o défice. Isto baseia-se em parte numa ideia que nos anos 80 foi aproveitada pelo partido republicano nos Estados Unidos e pelo então Presidente Ronald Reagan, de que se baixassem os impostos – que era a plataforma da campanha dos republicanos na altura –, de tal maneira que haveria mais actividade económica e teriam mais receita fiscal.
Isto vem da ideia do economista Arthur Laffer, de que se reza a história que desenhou num guardanapo uma curva onde estaria expresso que se diminuíssemos o imposto íamos ter mais receita fiscal porque as pessoas passam a trabalhar mais e as empresas a investir mais e assim ficou denominada a Curva de Laffer.
Como é que a Esquerda, sensatamente, reagiu a esta teoria económica? Chamou-lhe um nome muito engraçado; nos Estados Unidos têm grandes universidades, mas também têm aquela veia do entretenimento e espectáculo, arranjam sempre estas conciliações magníficas e então chamou-se àquilo deVoodoo Economics, que é uma maneira de dizer que aquilo é uma treta. Descemos o imposto e sobe a receita fiscal. É a mesma ideia, mas agora usando para a política expansionista nos gastos do Estado.
Vejam bem como isto é curioso: em 30 anos, a Esquerda que chamavaVoodoo Economicsà plataforma do Reagan, nos anos 80, e que é preciso dizer que pelo menos no curto-prazo falhou, porque os americanos começaram a apresentar défices brutais, passou agora a ter credenciais de grande teoria económica. Será que não é a mesmaVoodoo Economics?
Em tese esta ideia não é inconsistente, mas depende mais uma vez do teste da realidade e do entendimento das circunstâncias. Só queria fazer esse reparo relativamente às políticas expansionistas e à política fiscal. A Regra de Ouro não proíbe as políticas expansionistas e a questão de que nós na verdade não controlamos o défice: tenham em mente que esta Regra de Ouro, tal como foi posta em cima da mesa na Europa e na Assembleia da República votada há uns meses, não é de o défice tem de ser sempre zero todos os anos, regularmente zero. Não é isso que está em causa. A ideia é que haverá um défice estrutural de 0,5% do PIB.
Não interessa agora os 0,5% do PIB, o que interessa é a ideia de estrutural. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que será um tendencial equilíbrio orçamental mas dando um desconto para as circunstâncias económicas do momento presente. Isto é, é inteiramente compatível com a Regra de Ouro que num momento de crise, sobretudo no exemplo que foi dado de uma crise súbita que destrói as receitas fiscais, essa Regra de Ouro está pensada para acomodar precisamente essas oscilações do ciclo económico que têm repercussões sobre as finanças públicas e isso está perfeitamente acomodado na ideia de défice estrutural.
Há muitas modalidades de transpor juridicamente esta regra para que emergências no presente não afectem a regra constitucional, mas possam ser compensadas no futuro. E aí há muitas modalidades que podem ser discutidas, mas não era isso que vocês tinham em mente hoje.
Dep.Carlos Coelho
Tenho a dizer aos senhores coordenadores que a seguir temos uma reunião extraordinária relacionada com a preparação da assembleia. Houve uns sorrisos audíveis, não sei porquê, devem gostar das reuniões à meia-noite, mas temos logo a seguir ao jantar uma reunião com os coordenadores.
Senhor professor Miguel Morgado, nós temos uma regra de cortesia na Universidade de Verão que é deixar a última palavra ao nosso orador, portanto não volto a usar este microfone e é a oportunidade de para lhe agradecer a incursão ideológica; não é comum termos uma reflexão ideológica na Universidade de Verão e com a profundidade que a fez e pelo sacrifício que fez de vir a este jantar e regressar imediato a Lisboa, porque sei que amanhã tem funções de Estado logo de manhã.
Para a última ronda de perguntas e as últimas respostas do professor Miguel Morgado, temos a Sofia Helena Matos do grupo Castanho e do Dery Cabral do grupo Laranja.
Sofia Helena Matos
Muito boa noite a todos. Cumpre-me dirigir um cumprimento ao Dr. Miguel Morgado, em nome do grupo Castanho da Universidade de Verão deste ano.
Considero que a questão que hoje lhe trago é essencial para um quadro de direito democrático como o nosso. Vou contextualizar: diz o nosso artigo nº 4 da Constituição da República Portuguesa que não são consentidas associações armadas, nem militares, ou militarizadas, ou de tipo paramilitar, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.
Obviamente, concordo com este preceito constitucional, mas parece-me de elementar justiça considerar que ele peca, das duas, uma: por excesso, ou por limitação. Se é óbvio que contesto os regimes fascistas e com eles nenhuma ideologia ou simpatia professo, é igualmente verdade que os milhares de mortos dos regimes ditatoriais e sem liberdade merecem igual repulsa.
Assim sendo, considero que, ou se retira a limitação, ou se estende a todos os partidos ideologias associadas a regimes ditatoriais. Todos sabemos que esta norma constitucional tem em si uma razão de ser, nomeadamente razões históricas e culturais. No entanto, parece-me que volvidos 36 anos não faz sentido continuar a manter esta directriz na nossa lei fundamental.
Assim, sobretudo considerando os princípios da igualdade e liberdade de associação que regem a nossa constituição e não nos esqueçamos que os partidos de ideologia fascista e nazi na Europa estão em notória ascensão. Falo, a título de exemplo, do Partido Nacional Renovador em Portugal, da Aurora Dourada de que tanto se ouve falar na Grécia, da Frente Nacional em França e do True Finns na Finlândia.
A questão que me traz aqui é simples: deverá a Constituição ser intolerante com estes partidos também intolerantes proibindo-os? Se sim, porquê não estender esta proibição a todos os partidos de extrema-Esquerda?
Dery Cabral
Boa noite a todos. Estou aqui em representação da Juventude Para a Democracia do partido cabo-verdiano Movimento Para Democracia, que corresponde à ideologia política do PSD.
A minha pergunta é: no actual contexto em que se vive uma crise global financeira, dos valores e também uma crise das instituições, acarretando como consequência a necessidade de revermos as nossas prioridades e também a forma de actuação política, surgindo muitas vezes uma situação de conflito entre os valores políticos e constitucionais, podemos de uma certa forma afirmar que estamos a caminhar para uma nova crise, neste caso, do constitucionalismo, ou então devido à necessidade de assegurarmos uma constituição aberta, simplesmente há uma necessidade de actualização e reformulação desses valores?
Muito obrigado.
Miguel Morgado
Em primeiro lugar, vocês não precisam de me agradecer por eu ter estado cá, foi mesmo um prazer, quando estou a dizer isto não são palavras de circunstância, pois gostei mesmo de estar cá convosco e de vos ouvir. Para mim foi importante, por isso não têm de me agradecer.
Quanto às perguntas: a questão constitucional e partidos de inspiração fascista; começava por dizer que nem todos os partidos que enunciou têm a mesma natureza. Não vou falar sobre a realidade portuguesa para evitar problemas, mas sobre os outros exemplos que deu: a Frente Nacional, a Aurora Dourada e o True Finns são partidos muito diferentes que eu não chamaria todos de fascistas. Há um que é indiscutivelmente fascista, porque nem se dão ao trabalho de disfarçar, que é a Aurora Dourada. Os outros disfarçam um bocadinho. Eu não consideraria a Frente Nacional igual à Aurora Dourada e o partido dos finlandeses tem características mesmo diferentes e não me parece que partidos nacionalistas devam ser confundidos imediatamente como fascistas, mas isso seria outra discussão.
Sobre a proibição constitucional, a minha resposta pouco elegante para si e espero que não pense que eu estou a ser malcriado, é que apesar de tudo na nossa Constituição temos problemas maiores que esses. Talvez essa não seja a prioridade de uma revisão constitucional. Agora, isso levanta uma questão da teoria política muito importante. Que é qual? É muito comum e até se tornou um pouco vulgarizada que é esta de nos perguntarmos se este regime de tolerância deve estender a sua tolerância até aqueles que são intolerantes para com o próprio regime. Isto é uma discussão muito antiga.
Começou por ser inicialmente uma resposta para a liberdade religiosa que suscitava problemas muito sérios na Europa do séc. XVI e XVII, mas depois quando o regime democrático e parlamentar triunfam na Europa, coloca-se precisamente esta questão: será que nós, os tolerantes, também temos o dever de tolerar os intolerantes? Há várias respostas para isto.
Conhecem aquela ideia de sociedade aberta, não é? Uma pessoa muito importante que talvez tenha sido quem falou pela primeira vez em sociedade aberta, no século XIX, disse assim: "todas as sociedades são abertas e simultaneamente fechadas”, quer dizer que há sempre ali um limite onde nós fechamos a coisa e nesse aspecto também diria que para que a sociedade da tolerância se possa proteger dos seus inimigos é também um limite para a sociedade da tolerância. O que é que aconteceu noutros países?
A Alemanha, por exemplo, tem uma história engraçada, não é? Reparem que a Alemanha tem um passado no pós-guerra, quando começa a República Federal Alemanha há um problema muito semelhante que é o de terem um passado horrível com o nacional-socialismo e então aparecerem uns grupos saudosistas do regime anterior que foi destruído na guerra e o que é que eles fazem com isto? Na altura até foi uma resolução do Tribunal Constitucional para resolverem a contenda e o que aconteceu foi que na Alemanha, à volta de 1951, o Tribunal Constitucional decidiu que era proibido haver partidos de inspiração nazi.
Essa regra ainda se encontra em vigor. Embora haja partidos nacionalistas na Alemanha, nenhum deles pode afirmar-se como descendente da ideologia nacional-socialista, têm de disfarçar. Então, rapidamente apareceram vozes muito semelhantes à da vossa colega. Tinham um problema com o totalitarismo, mas ele não foi apenas nacional-socialista, foi bolchevique, ou comunista. Assim, o Tribunal Constitucional alemão após uns quatro anos decidiu ilegalizar também os partidos comunistas.
Por isso, numa democracia como na República Federal alemã ambos os partidos extremos são proibidos, mas, enfim, diria que não é uma grande prioridade constitucional, mas como problema da teoria política e até para pensarmos no limite de uma sociedade tolerante acho que a questão deve ser colocada.
A outra pergunta aponta para tão longe: se nós estamos aqui na iminência de uma crise constitucional, de uma oposição entre os nossos valores fundamentais e os interesses políticos. Basicamente, isso é perguntar qual é o futuro da democracia e eu não tenho uma resposta para isso.
Como todas as comunidades que radicam no contributo que cada uma das pessoas tem para dar, na expressão da sua liberdade, o que eu diria e que é uma resposta sem grande valia, mas é o que é, é que a gravidade ou superação dessas crises, como aquela que estamos a viver agora e que se pode acentuar no futuro, depende do contributo que cada um de nós der para a vida colectiva.
Dito isto, também não nos podemos esquecer que – e isso tornou-se mais notório sobretudo após a queda do muro de Berlim, por razões que agora não temos tempo para explorar – é evidente que a Europa vivia uma crise que já lá estava antes da crise económica e financeira, das instituições europeias. É uma crise mais profunda, que nos exige uma meditação mais prolongada e que se calhar não tem cabimento no próprio espaço público, quero dizer que é algo que transcende a própria política.
Basicamente, pode ser resumida deste modo: houve muita gente que no século XX diagnosticou que estávamos a atravessar uma crise civilizacional, porque tínhamos perdido as certezas anteriores sobre o que é que é ser Homem, o que é ser humano, qual a sua vocação e natureza, e isso tinha consequências políticas inevitavelmente. Isto já foi diagnosticado há muito tempo.
Qual é então a novidade que se manifesta e que temos nesta crise na Europa há pelo menos 20, 30 anos? É talvez a particularidade que nós temos, hoje, de nos resignarmos e confessarmos que sim, não sabemos nada sobre a vocação e as finalidades dos seres humanos e então, desistimos de perguntar, encolhemo-nos nas nossas preocupações presentes, perdendo qualquer horizonte de projectos para o futuro. Isso, sim, põe em risco qualquer comunidade política, tendo esta mais ou menos cariz democrático.
Mas, uma vez mais, talvez eu tenha de sublinhar que este tipo de reflexão transcende o próprio debate político. Há que ver que a política não é o bem maior dos Homens, não é a actividade mais nobre e temos de pensar sempre que há algo maior que a política, por uma razão: porque a partir do momento em que colocamos a política como a actividade mais nobre e o bem maior para os Homens, vamos necessariamente corromper a política e isso é um problema muito grave.
Resta-me, então, agradecer a vossa paciência; vocês foram óptimos e fizeram perguntas extraordinárias. Quero agradecer também à organização, aos meus amigos Carlos e Duarte. Foi um prazer estar cá e uma vez mais, volto a dizer que é importante que vocês estejam concentrados no debate público sobre as grandes questões nacionais, que mantenham o vosso pensamento crítico e sejam livres na vossa maneira de pensar.
É muito importante que façam um esforço, todos os dias e a todas as horas, para não se limitarem a repetirem os lugares comuns e a linguagem canónica que é utilizada nos espaços públicos. Não tem nada a ver, agora, com o PSD, nem com o Governo, tem a ver com a vossa liberdade como seres pensantes que são.
É muito importante que não cedam sempre a essa facilidade que é nós alinharmos por um vocabulário, uma linguagem e por ideias que nos foram transmitidas e que não são exactamente as nossas: pensem pela vossa cabeça, essa é a melhor manifestação da vossa liberdade que vocês podem ter.